quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Desafios de uma Perspectiva Intercultural na Ação Política das Mulheres Negras

Desafios de uma Perspectiva Intercultural na
Ação Política das Mulheres Negras*
Roselice da Silva
 Historiadora e Consultora em Gênero,
                                                                                                                                                     Raça e Desenvolvimento

Abordar a questão da participação política das mulheres negras numa perspectiva intercultural enquanto desafio, deve-se à forma como ocorreu a inserção das mesmas na sociedade brasileira. Assim não podemos desconsiderar, que embora decorridos 125 anos da abolição da escravidão no Brasil, último país da América a libertar a população escravizada, ainda vivemos sob a égide da definição do locus social das pessoas, de acordo com o seu matiz cromático, isto é, seu perfil etnicorracial.
Apesar da insistência de significativa parte de políticos e da intelectualidade brasileira em apresentar o Brasil como paraíso da democracia racial, como se esta fosse a tônica prevalente nas relações entre os distintos segmentos raciais, paradoxalmente a realidade dos brancos e não brancos expõe o abismo existente entre a vida destes segmentos. Esse abismo é evidenciado nos indicadores sociais e econômicos e pelas inúmeras pesquisas/estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] que ratificam a predomínio de uma lacuna inadmissível, onde os primeiros ostentam índices que revelam sua condição privilegiada, não obstante os investimentos, os equipamentos sociais e os organismos públicos criados há cerca de dez anos, como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial [SEPPIR], a Secretaria Especial de Direitos Humanos [SEDH] e Secretaria Especial de Políticas para Mulheres [SEPM], todas na esfera do governo federal e atuando na perspectiva de implementar e articular interinstitucionalmente políticas públicas que venham por fim às absurdas desigualdades raciais ainda vigentes no Brasil.
A inserção social, econômica e cultural das mulheres negras no período pós-abolição, ocorreu enfrentando incontáveis embates para garantir a [re]construção e afirmação da sua identidade, bem como sua “inserção” no bojo das novas relações de trabalho livre, em substituição ao trabalho escravo. Entretanto, é prudente afirmarmos, antes que nos escape este dado de relevância ímpar para compreendermos a complexidade das relações interétnicas no Brasil, não houve por parte do estado e das elites econômicas o interesse em absorver a mão de obra dos libertos e libertas. Consideravam estes inaptos/as para o trabalho livre. Outrossim, bem sabemos dos interesses ocultos nessa negação. Tais elites tinham como um dos objetivos, apagar a “mácula” da escravidão, e em especial subtrair a população negra liberta do convívio social, em especial dos espaços públicos, com o intuito de promover o desejado salto para a modernidade, aproximando-se assim do status quo de civilizada, referência importada da sociedade europeia.
Mas, o que isto tem exatamente a ver com a perspectiva da interculturalidade, enquanto mecanismo de estreitamento dos diálogos que deveriam evolver as mulheres negras com os setores responsáveis pela garantia de direitos e superação do quadro de desigualdades? Do nosso ponto de vista é inevitável não fazermos essa contextualização, visto que ela nos dá um panorama dos entraves, preteritamente, impostos para cercear as possibilidades do outro, da outra em protagonizar referências positivas da sua representação social.
Em que pese esses contramovimentos, as mulheres negras, autônomas ou vinculadas a organizações formalizadas [institucionalizadas] protagonizam histórias de engajamento social que nos permite reflexões amadurecidas dessa trajetória, das conquistas, mas, sobretudo do fortalecimento da capacidade de desmistificar, ou melhor, desnaturalizar a percepção de que havia uma incapacidade destas mulheres para atuação na esfera política, emergindo em diversos espaços sujeitas políticas autônomas, que contrariam preconceitos e predeterminações, renegando o lugar estabelecido como seu no imaginário da sociedade branca e patriarcal, insubordinando a tese do mentor da teoria da democracia racial no Brasil, Gilberto Freyre, segundo o qual os lugares para as mulheres estão assim distribuídos: “Branca para casar, mulata para f... e negra para trabalhar” [1992, p. 10].
Neste cenário, ainda permeado por iniquidades, incorporar a dimensão da interculturalidade no âmbito desse debate, significa de um lado, abrir espaço para o diálogo. Contudo, isto não significa dizer que não havia essa predisposição por parte das mulheres negras, mas aponta para uma dificuldade existente tanto por parte das organizações de mulheres e feministas brancas quanto por parte do poder público. As primeiras, historicamente definiram suas bandeiras de luta, em acordo exclusivamente com seus interesses, melhor dizendo a partir do ângulo que lhes era conveniente, considerando que as mulheres têm necessidades e direitos universais, não importando variantes como raça/etnia, classe e cultura. Todas cabem no mesmo guarda-chuva e assim eliminam a possibilidade de diálogo com as especificidades das trajetórias de cada agrupamento de mulheres. Observa-se nessa perspectiva, mais uma vez, o viés ocidental autoritário, que surrupia da outra o direito de escolha e de incorporar numa ação coletiva, o seu olhar, as suas demandas ou o seu foco do problema. Do outro lado, inevitável não destacar, o poder público adotou ou adotava também uma perspectiva universalista na definição das políticas públicas para as mulheres, partindo do princípio que estas políticas atenderiam indistintamente a todas as mulheres.
Obviamente que não, e isto é comprovado pelos dados dos próprios institutos oficiais [IBGE; IPEA], bem como por outras pesquisas realizadas por instituições que gozam de reconhecimento público. Entretanto, esta é uma realidade que saltam aos olhos, o cotidiano nos “brinda” com cenas e contrastes estarrecedores, necessariamente não precisaríamos de pesquisas para confirmar essa realidade. Ainda assim, abundam dados acerca destas iniquidades que afetam soberbamente as mulheres negras no Brasil, os quais nos revelam que estas são predominantes entre os que possuem menor qualificação profissional e educacional; constituem majoritariamente o exército de trabalhadoras domésticas; engrossam as fileiras do trabalho informal; e mesmo em condições [formação educacional, técnica e intelectual], que poderiam lhe aferir igualdade de direitos [social, econômico e político] são “premiadas” com os menores rendimentos, bem como enfrentam maiores dificuldades para ascenderem profissionalmente, ou seja, a garantia de compatibilização da qualificação com a função desempenhada e consequentemente de remuneração equivalente, conforme parâmetros utilizados para homens e mulheres brancas.
Todavia, apresentarmos esses entraves não significa que não há canais possíveis para o diálogo, mas que este deverá estar fundado em outros termos, em outros princípios como a igualdade, a equidade, a solidariedade, a justiça social e o respeito às diferenças. A interculturalidade não pode ser utilizada como estratégia na pós-modernidade para diluição das particularidades e assim forjar espaço para predominância de perspectivas universalizantes e hegemônicas, pois como bem enfatiza a intelectual afro-americana, Patrícia Hill Collins, “A supressão ou aceitação condicional do nosso conhecimento é sempre uma possiblidade, mesmo nos contextos que dependem da nossa atuação” [BAIRROS, 1995, p. 463]. Por certo, entre tantos outros que dialogam entre si, este é um dos grandes desafios a enfrentarmos, o reconhecimento incondicional da nossa identidade, da nossa historicidade e consequentemente das nossas contribuições no processo de formação econômica, social e cultural brasileira, no qual estabelecemos o mote da nossa participação política.


* Artigo publicado originalmente no Boletim do PNUD, Genero & Igualdad: Revista Digital del Área Práctica de Género. América Latina, Maio, 2013. Texto original no link abaixo: