Desafios de uma Perspectiva
Intercultural na
Ação Política das Mulheres Negras*
Roselice da Silva
Historiadora e Consultora em Gênero,
Raça e Desenvolvimento
Abordar a questão da participação política das mulheres negras numa
perspectiva intercultural enquanto desafio, deve-se à forma como ocorreu a
inserção das mesmas na sociedade brasileira. Assim não podemos desconsiderar,
que embora decorridos 125 anos da abolição da escravidão no Brasil, último país
da América a libertar a população escravizada, ainda vivemos sob a égide da
definição do locus social das
pessoas, de acordo com o seu matiz cromático, isto é, seu perfil etnicorracial.
Apesar da insistência de significativa parte de políticos e da
intelectualidade brasileira em apresentar o Brasil como paraíso da democracia
racial, como se esta fosse a tônica prevalente nas relações entre os distintos
segmentos raciais, paradoxalmente a realidade dos brancos e não brancos expõe o
abismo existente entre a vida destes segmentos. Esse abismo é evidenciado nos
indicadores sociais e econômicos e pelas inúmeras pesquisas/estudos realizados
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] e pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] que ratificam a predomínio de uma lacuna
inadmissível, onde os primeiros ostentam índices que revelam sua condição
privilegiada, não obstante os investimentos, os equipamentos sociais e os
organismos públicos criados há cerca de dez anos, como a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial [SEPPIR], a Secretaria Especial de
Direitos Humanos [SEDH] e Secretaria Especial de Políticas para Mulheres
[SEPM], todas na esfera do governo federal e atuando na perspectiva de
implementar e articular interinstitucionalmente políticas públicas que venham por fim às absurdas desigualdades raciais ainda
vigentes no Brasil.
A inserção social, econômica e cultural das mulheres negras no período
pós-abolição, ocorreu enfrentando incontáveis embates para garantir a
[re]construção e afirmação da sua identidade, bem como sua “inserção” no bojo
das novas relações de trabalho livre, em substituição ao trabalho escravo.
Entretanto, é prudente afirmarmos, antes que nos escape este dado de relevância
ímpar para compreendermos a complexidade das relações interétnicas no Brasil,
não houve por parte do estado e das elites econômicas o interesse em absorver a
mão de obra dos libertos e libertas. Consideravam estes inaptos/as para o
trabalho livre. Outrossim, bem sabemos dos interesses ocultos nessa negação.
Tais elites tinham como um dos objetivos, apagar a “mácula” da escravidão, e em
especial subtrair a população negra liberta do convívio social, em especial dos
espaços públicos, com o intuito de promover o desejado salto para a
modernidade, aproximando-se assim do status
quo de civilizada, referência importada da sociedade europeia.
Mas, o que isto tem exatamente a ver com a perspectiva da
interculturalidade, enquanto mecanismo de estreitamento dos diálogos que
deveriam evolver as mulheres negras com os setores responsáveis pela garantia
de direitos e superação do quadro de desigualdades? Do nosso ponto de vista é
inevitável não fazermos essa contextualização, visto que ela nos dá um panorama
dos entraves, preteritamente, impostos para cercear as possibilidades do outro,
da outra em protagonizar referências positivas da sua representação social.
Em que pese esses contramovimentos, as
mulheres negras, autônomas ou vinculadas a organizações formalizadas
[institucionalizadas] protagonizam histórias de engajamento social que nos permite
reflexões amadurecidas dessa trajetória, das conquistas, mas, sobretudo do
fortalecimento da capacidade de desmistificar, ou melhor, desnaturalizar a
percepção de que havia uma incapacidade destas mulheres para atuação na esfera
política, emergindo em diversos espaços sujeitas políticas autônomas, que
contrariam preconceitos e predeterminações, renegando o lugar estabelecido como
seu no imaginário da sociedade branca e patriarcal, insubordinando a tese do
mentor da teoria da democracia racial no Brasil, Gilberto Freyre, segundo o
qual os lugares para as mulheres estão assim distribuídos: “Branca para casar,
mulata para f... e negra para trabalhar” [1992, p. 10].
Neste cenário, ainda permeado por iniquidades, incorporar a dimensão da
interculturalidade no âmbito desse debate, significa de um lado, abrir espaço
para o diálogo. Contudo, isto não significa dizer que não havia essa
predisposição por parte das mulheres negras, mas aponta para uma dificuldade
existente tanto por parte das organizações de mulheres e feministas brancas
quanto por parte do poder público. As primeiras, historicamente definiram suas
bandeiras de luta, em acordo exclusivamente com seus interesses, melhor dizendo
a partir do ângulo que lhes era conveniente, considerando que as mulheres têm
necessidades e direitos universais, não importando variantes como raça/etnia,
classe e cultura. Todas cabem no mesmo guarda-chuva e assim eliminam a
possibilidade de diálogo com as especificidades das trajetórias de cada
agrupamento de mulheres. Observa-se nessa perspectiva, mais uma vez, o viés
ocidental autoritário, que surrupia da outra o direito de escolha e de
incorporar numa ação coletiva, o seu olhar, as suas demandas ou o seu foco do
problema. Do outro lado, inevitável não destacar,
o poder público adotou ou adotava também uma perspectiva universalista na definição das
políticas públicas para as mulheres, partindo do princípio que estas políticas
atenderiam indistintamente a todas as mulheres.
Obviamente que não, e isto é comprovado pelos dados dos próprios
institutos oficiais [IBGE; IPEA], bem como por outras pesquisas realizadas por
instituições que gozam de reconhecimento público. Entretanto, esta é uma
realidade que saltam aos olhos, o cotidiano nos “brinda” com cenas e contrastes
estarrecedores, necessariamente não precisaríamos de pesquisas para confirmar
essa realidade. Ainda assim, abundam dados acerca destas iniquidades que afetam
soberbamente as mulheres negras no Brasil, os quais nos revelam que estas são
predominantes entre os que possuem menor qualificação profissional e
educacional; constituem majoritariamente o exército de trabalhadoras domésticas;
engrossam as fileiras do trabalho informal; e mesmo em condições [formação
educacional, técnica e intelectual], que poderiam lhe aferir igualdade de
direitos [social, econômico e político] são “premiadas” com os menores
rendimentos, bem como enfrentam maiores dificuldades para ascenderem
profissionalmente, ou seja, a garantia de compatibilização da qualificação com a
função desempenhada e consequentemente de remuneração equivalente, conforme
parâmetros utilizados para homens e mulheres brancas.
Todavia, apresentarmos esses entraves não significa que não há canais
possíveis para o diálogo, mas que este deverá estar fundado em outros termos,
em outros princípios como a igualdade, a equidade, a solidariedade, a justiça
social e o respeito às diferenças. A interculturalidade não pode ser utilizada
como estratégia na pós-modernidade para diluição das particularidades e assim
forjar espaço para predominância de perspectivas universalizantes e
hegemônicas, pois como bem enfatiza a intelectual afro-americana, Patrícia Hill
Collins, “A supressão ou aceitação condicional do nosso conhecimento é sempre
uma possiblidade, mesmo nos contextos que dependem da nossa atuação” [BAIRROS,
1995, p. 463]. Por certo, entre tantos outros que dialogam entre si, este é um
dos grandes desafios a enfrentarmos, o reconhecimento incondicional da nossa
identidade, da nossa historicidade e consequentemente das nossas contribuições
no processo de formação econômica, social e cultural brasileira, no qual
estabelecemos o mote da nossa participação política.
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Artigo publicado originalmente no
Boletim do PNUD, Genero & Igualdad: Revista Digital del Área Práctica
de Género. América Latina, Maio, 2013. Texto original no link abaixo:
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