Desejo partir de alguns princípios para mim incontroversos, sem os quais não haveria qualquer entendimento sobre o que de fato penso.
Assim, em primeiro lugar, entendo que o homem é um bicho, no sentido literal da palavra, adornado através de um processo lento de endoculturação ( eu poderia dizer adestramento) direto e um outro processo ainda mais longo, qual seja o da construção das civilizações hodiernas sob a égide da cultura, sejam aquelas ocidentais, sejam aquelas orientais.
Ao afirmar este princípio não estou a dizer que o bicho homem seja idêntico aos bucéfalos (apesar de encontrarmos uma quantidade assustadora de bucéfalos todos os dias, especialmente no trânsito das cidades e nas principais repartições públicas). Não, não o é. O homem é o único dos animais ( para outros há os jegues) que não é monádico – como são todos os outros, e isto em decorrência da capacidade neuronal adquirida pela evolução da espécie e consolidada em seu dia a dia, cujo cume foi a invenção do símbolo. E não é monádico também porque o homem é o único bicho capaz de fazer hermenêutica da existência, sendo certo que o conceito aqui de existência abrange o Mundo na sua totalidade.
O único bicho que tem a consciência da sua própria perdição, do vazio e do pegajoso nada que se encontra mergulhado, o que lhe remonta a uma desesperada e insana consciência do “sem sentido da vida”, um sem sentido monstruoso, como se fosse um paquiderme socado dentro do estômago, onde até um simples roçar de uma mão nos cabelos, ou um olhar de sorriso, ou um afago de longo, o faz contente e feliz. Eis uma das razões pela qual, malgrado animal todas as teorias psicológicas, necessitamos do carinho do semelhante – porque tudo é absolutamente gratuito e contingente, um afago torna-se o éden para quem coisa alguma possui.
O segundo princípio é: a existência humana afigura-se como um movimento em “ direção a”, exatamente por conta desse vazio. Em direção a significa: rumo ao futuro enquanto possibilidade e somente possibilidade. Essa maratona olímpica vai em busca de um Sentido, sob pena de não se tornar possível a sobrevivência humana – inventamos tudo que nos cerca e copiamos tudo que encontramos, contentamo-nos, assim, por exemplo, com uma TV de plasma ou a perda de tempo em conversas muitas vezes imbecis nas redes sociais e idem perfis falsos, ou mesmo discussões filosóficas sobre o Nada, tudo em busca de um sentido para a vida, jogado que fomos nela a um tempo espaço pré-determinado pela gratuidade de um coito, cujas razões desconhecemos, ou fruto de uma introdução mecânica de sêmen no útero de uma mulher.
Em terceiro lugar este mundo não é o paraíso perdido, o paraíso perdido foi-se nos idos da Queda quando Eva mordeu o fruto proibido – este mundo é a própria hostilidade materializada, ou seja, “um vale de lágrimas, o Mundo é cruel na sua inteireza”.
Estes são os princípios fundamentais para as idéias que aqui serão expostas.
O que significa educar? O que significa paz?
No que tange ao educar todos nós sabemos acerca das duas categorias existentes: a formal e a informal. A formal encontra-se espalhada pelas Escolas, Colégios, Cursos Superiores sob a batuta de educadores profissionais, ou comerciantes hoje a maioria; a informal é aquela proveniente do núcleo primevo que acolheu o homem, ou seja, a família, entendendo-se o conceito de família como aquele mais abrangente, isto é, não apenas pais, mas e principalmente o grupo do entorno do homem, sejam amigos, vizinhos, companheiros ou simples colegas de trabalho e ou escola.
A educação formal tornou-se a panacéia do Século XXI. Por invenção de algum desocupado monista, a educação formal transformou-se na quinta essência que buscavam os antigos esotéricos: tudo pode ser resolvido através da educação formal, inclusive a violência humana. Não sei quem distorceu tão atabalhoadamente o conceito de educação formal a ponto de transmutá-lo em um modismo: até o Congresso Nacional seria melhor representado se e somente se houvesse educação formal para todos os seus integrant5es e em especial se todos houvessem saído de uma Instituição de Ensino Superior, preferencialmente PhDs ( o ex Presidente da República foi alvo inúmeras vezes da burguesia imbecil por não saber falar o português “correto” – como se “falar português correto” fosse a outorga para a capacidade de se construir uma Harmonia entre os semelhantes...).
O Conhecimento fez-se apenas científico, relegando-se aquele popular a um monte de inutilidade e inverdade como um todo.
Recorda-me o conceito de reengenharia no começo da década de oitenta: um engodo alastrado pelo mundo que morreu por absoluta ausência de conteúdo, ausência de conteúdo porque se atribuiu à reengenharia, como ora se atribui à educação formal, o único caminho rumo ao desenvolvimento, construção, perfeição e consolidação de um tipo humano não humano: um anjo sem asas – o engano tanto da única via de solução dos paradoxos, quanto da quimera de transformar o bicho em anjo.
A ânsia é tamanha em colocar a educação formal como solução das contradições, especialmente a superior, que me sinto tentado a pular do bonde do mundo antes que falte a estes coveiros com Phd para enterrar meu corpo – não desejo ficar exposto aos urubus, já os tenho em demasia na vida.
Enquanto isso, a educação informal, o principal alicerce do adestramento humano cuja gênese encontra-se no peito da mãe, foi relegada ao esquecimento barulhento dos corredores dos shoppings centers ou das baladas de um pagode de gosto estético no mínimo duvidoso...
A educação informal foi mergulhada em um tanque subterrâneo, lacrada por concreto e aço e adormecida através de ansiolíticos.
E o que significa Paz? Poder-se-ia traduzi-la como tranqüilidade? Satisfação interior? Equilíbrio? Harmonia? Convergência de interesses duais e coletivos? Ou um estado de graça?
Quero entender o termo Paz não no seu sentido metafísico idealista: Paz, para mim, é a convergência das divergências das consciências em torno de um comum acordo circunstancial-concreto-histórico-espacial, por um caminho cujo objetivo se torna único, mesmo havendo interesses antitéticos e ou divergentes entre os interessados: é a Harmonia dos contrários.
A Paz, na sua totalidade, revela-se em si mesmo como uma outra quimera ou um simples sacrifício de ordem pessoal: um sonho inatingível ou um esforço consciencial para renunciar-se aos projetos individuais em benefício de um valor escolhido como mais elevado e que abranja toda a Humanidade. Isto seria a Paz.
Portanto, já temos alguns problemas: de um lado a animalidade humana e sua ferocidade, l em parte intersectados à crueldade do Mundo, um dantesco inferno vivo que nos obriga por força de suas lei químico-físico-biológicas a burlar-lo diuturnamente: ademais um vazio permanente a acompanhar-nos pela vida, em uma corrida desesperada do Sentido buscado; d ´outro lado, por fim, a necessidade de atingir uma harmonia momentânea sem a qual pereceremos e destruiremos a própria humanidade e, portanto, o Mundo. Entrementes uma encruzilhada: “Mundo sem Consciência não há, Consciência sem Mundo é inexistente”.
A questão, então, que se coloca é como fazê-lo, de forma a construir o caminho, de que forma atingir o objetivo maior que é a preservação da existência, se é que há viabilidade desta pretensão.
Particularmente, não vislumbro possibilidade de uma harmonia perene entre os contrários, haverá sempre tensão, mas um pacto temporário e acima de tudo repleto de tribulações próprias da temporalidade.
Tampouco sou monista e, por isto, não penso que a educação formal seja o únc0o caminho a ser utilizado para atingir o pacto apontado.
A animalidade humana não foi extinta, foi domada. Mas domada em certas circunstâncias concretas e historicamente definidas, ou se desejarem em situações aprisionadas por situações. Represou-se um vulcão, contudo não se destruiu o vulcão, este permanece ativo e adormecido de acordo com suas circunstâncias, mas ativo e vivo quando se lhe querem ou se lhe oferecem as razões de rugir.
Gostaria de perguntar a cada um de vocês quantas vezes pensaram em literalmente arrancar os miolos dos seus semelhantes, mesmo que através de dentadas, ou estuprar a garota faceira que bela lhes rejeita, como fazem todos os bichos que habitam esta casa chamada Mundo. Nenhum de nós que pensamos em liquidar um ou outro, ou estuprar o semelhante, ainda o fez – simplesmente em decorrência do adestramento que tivemos durante nossas respectivas vidas, um adestramento acima de tudo informal, damos um murro na parede, gritamos e ou mergulhamos no deus Onan, mas não matamos, nem estupramos.
O que desejo afirmar e que fique claro: nosso adestramento amenizou e ou adormeceu nossos instintos, contudo não os matou, não os extinguiu – suportamos as mazelas das relações consciências, aceitamos como franciscanos os golpes e mal entendidos da comunicação entre consciências, acatamos a fúria de terceiros, mas te certo ponto, até a exaustão completa ou parcial quando explodimos e fincamos no ventre alheio toda nossa violência represada durante milênios e milênios de adestramento incorporado.
Assim é a animalidade humana: um vulcão aprisionado e pronto para morder a jugular dos idealistas ou dos pretensos indicadores de caminhos angelicais, os mesmos que semearam a falsa idéia de que a educação formal é a solução para todos os problemas e especialmente a via para se atingir a Paz.
Em outras palavras: hoje o Conhecimento formal transformou-se no único esteio do que se pretende e da erudição fez-se a necessidade. Esquecem-se os monistas que conhecimento pressupõe Verdade e que Verdade não se encontra na Consciência, mas no Mundo – acontece que para atingi-la é necessário interpretar, e interpreta-se falsamente. Isto significa: não é através do Conhecimento formal, apenas, que poderemos pactuar um tipo de Harmonia em busca de nossa sobrevivência.
A Verdade é uma certeza, mas sua apropriação apenas uma possibilidade.
A fim de que se possa tingir o pacto que lhes escrevo, e isto penso eu, deve-se rever alguns procedimentos consolidados por inúmeras transformações provenientes dos sistemas econômicos inventados por nós mesmos e enraizados ao longo da História da Humanidade.
A primeira reformulação deve passar pelo papel de Mãe e Pai no adestramento de seus filhos – não é possível que continuemos no silêncio obsequioso dos dias de hoje no que tange aos processos endoculturativos necessários para a mitigação da animalidade.
Mãe e Pai ausentam-se em busca da suposta sobrevivência ( o que significa a aquisição imediata do novo aparelho de escuta multidimensional à distância, ou seja lá o que inventarem como necessário à vida), depositam seus filhos nas mãos de terceiros, ou quartos, chegam às suas casas ( na verdade estalagens ) cansados e mau humorados, não têm tempo suficiente para um afago nas cabecinhas ou um beijo nas bochechas rechonchudas dos seus rebentos, não lhes fornecem sequer um sorriso, porque simplesmente não conseguem, e dormem após o sexo, quando há, como outras tantas hienas o fazem, não sem antes aborrecerem-se quando abrem as faturas dos cartões de crédito.
Pela manhã cedo, eis que o dever os chama alguém vem buscar suas crias para a Escola e, vida que segue, seus contatos deixam o núcleo original e o espelho da imitação para terceiros que apesar de fazerem parte do todo, é parte, não é o todo. Retornam os bichinhos para a Estalagem e encontram uma mal humorada criada à sua espera – algumas usam chicote, outras mais sutis a indiferença – e tome-lhes virtualidade, virtualidade, virtualidade (isto na classe média, imagine na linha de pobreza).
A virtualidade tornou-se de tal sorte dominante que expressões óbvias agora são cognominadas de “politicamente incorretas” (outro desocupado e rico a cunhou). Desta forma, não posso chamar anão de anão, deve ser hipo-suficiente de altura, não posso chamar cego de cego, deve ser deficiente visual – ora, pois, a virtualidade chegou à linguagem, a hipocrisia atingiu o Real, condenamo-nos ao mundo do faz de conta e até um bom dia é interpretado como sinal de presunção ou esnobismo.
Ademais, alargou-se o conceito de “amigo” para todos, inclusive em relação aos filhos : meus filhos não são meus amigos, são meus filhos e devo exercer a autoridade necessário para domá-los nesta Selva. Amigo não determina, aceita; amigo não aponta o caminho, cala; amigo é cúmplice, não autoridade; amigo é companheiro de jogos, esquina, burla e prazer; amigo não adestra, acolhe.
E o pior: este conceito de “amigo” atingiu a educação formal e a “pedagogia do amigo” tornou-se outra panacéia – uma discussão que levaria horas e horas, folhas e folhas de escrita...
Parece um discurso na contramão da História, e não o é: é um discurso de pretensão à reflexão – estamos de fato construindo uma harmonia entre os díspares? Estamos conseguindo o adestramento dos animais, estes que somos? Ou atingimos um ponto de não estarmos a controlar nossas próprias animalidades? Como posso controlar um animal senão através de atitudes hoje denominadas de autoritárias?
E o pior: qualquer gesto de carinho, o mínimo que seja, é interpretado automaticamente como submissão ou fraqueza: o pragmatismo tomou conta da Vida e está destruindo a Vida.
Não lhes entrego soluções, não as tenho, contudo há uma imperiosa necessidade, e urgente, de refletir-se, sem qualquer preconceito, com o fito de encontrar um caminho para escaparmos do monismo da educação informal, já falida, como único fundamento que propiciaria o desenvolvimento humano. Precisamos entender, de uma vez por todas, que a Violência humana não será extinta e de que a Paz não se constrói senão com as diferenças e que é na reestruturação da família que conseguiremos um adestramento dos humanos para atingir a Harmonia que necessitamos.
Se me perguntarem das possibilidades de se atingir tudo isso, confesso-lhes que sou um grande cético, ao enxergar e escutar o que até agora estamos a construir como Mundo, todavia em sendo o futuro uma possibilidade, abre-se as asas da esperança, esta fincada na concretude da existência: se dermos, e somente se, uma guinada no projeto arquitetônico que construímos um projeto cujos resultados se nos apresentam como ineficientes, aí sim a possibilidade torna-se certeza e alcançaremos, no futuro, a Harmonia que se diz Paz.
Então, pode bem dar-se que possamos tranquilamente adormecer no colo de uma mulher como fazíamos no útero aconchegante das nossas mães e gargalhar despudoradamente qual menino travesso quando empina suas coloridas pipas na imensidão do firmamento.
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